POR ENTRE AS SOMBRAS.

Eram mais ou menos TRÊS e meia da madrugada quando dona Sara se assustou com o telefone tocando. Era do hospital, onde a assistente social pedia para que alguém responsável pela Heloísa Brandão comparecesse àquela unidade de saúde, porque a jovem havia sofrido um acidente de automóvel. Atordoada, dona Sara acordou a sua irmã Eunice, que era enfermeira, para acompanhá-la até o Hospital Da Bahia, para onde tinham levado a Heloísa.

Já no hospital, dona Sara ficou sabendo que a sua filha, juntamente com o namorado o Leandro, tinham dado entrada no hospital depois de serem retirados de dentro de um rio pela equipe de salvamento do corpo de bombeiros, após o carro dirigido pelo Leandro ter colidido frontalmente com outro veículo e caído no rio. Como a mãe e o irmão do Leandro também estavam aguardando notícias do rapaz, a assistente social conduziu todo mundo para uma sala de espera e pediu para que aguardassem o médico que poderia conversar melhor com os familiares dos jovens.

Enquanto o tempo passava e nada do médico aparecer, dona Sara se lembrava do quanto a Heloísa estava feliz naquele dia. A moça tinha passado a tarde no salão de beleza, escovando os cabelos e fazendo as unhas para ir para o show da dupla Artur e Adriano que ela curtia demais e aquela era a primeira vez que a dupla fazia show em Salvador. Ela tinha saído de casa antes das 9 da noite, na companhia do Leandro e de duas amigas que moravam na mesma rua, a Bia e a Denise, que também eram loucas pela dupla.

Finalmente chegou o médico e disse olhando para os aflitos parentes dos jovens acidentados:

- Quem é parente do Leandro Macedo?

A dona Lúcia e o Eduardo se aproximaram e o médico começou a explicar:

- O Leandro teve um dos braços e a clavícula quebradas, além de duas costelas. Ele está sendo operado nesse momento e, em fim, vai ficar tudo bem. Assim que passar o efeito da anestesia ele será transferido para o quarto e a família poderá ficar com ele. Poderia ter sido bem pior se ele não estivesse usando o sinto de segurança. – Concluiu o médico.

- E a minha filha, doutor? – Indagou a dona Sara aflita.

- A senhora é a mãe da paciente Heloísa Brandão?

- Sou eu sim, doutor. E essa é minha irmã.

- As senhoras poderiam me acompanhar, por favor?

As duas, ainda mais aflitas acompanharam o médico por um corredor enorme, até chegar a uma sala de espera que ficava bem em frente à UTI.

- Mas afinal? O Que aconteceu com a minha sobrinha? – Perguntou a Eunice.

- Eu atendi a sua sobrinha e o outro rapaz na emergência. O caso da sua sobrinha é um pouco mais complicado porque ela estava sem o sinto de segurança e foi arremessada para fora do carro quando eles caíram no rio. Ela bateu fortemente a cabeça numa pedra e está nesse momento sobre os cuidados de um neurologista e um neurocirurgião.

- E é grave, doutor? – Perguntou a Eunice enquanto a dona Sara desmaiava na poltrona.

Antes de responder a pergunta da dona Eunice, o doutor Cláudio chamou duas enfermeiras para darem socorro à dona Sara e assim que tudo foi providenciado, ele continuou:

- Ela não teve traumatismo craniano, portanto, não teve perda de massa encefálica. Mas a paciente teve um afundamento no crânio e chegou ao hospital inconsciente e com a pressão intra-craniana bastante alta. A equipe de cirurgia está trabalhando no sentido de reduzir a pressão para realizar a cirurgia. Vocês fiquem aguardando aqui, que o doutor Ralf Sampaio virá conversar com vocês em instantes.

O Doutor Cláudio se retirou e as duas aguardaram até que o médico chegasse. Ele chegou mais ou menos meia hora depois e a dona Sara foi logo perguntando:

- É o senhor que é o doutor Ralf Sampaio?

- Sim senhora. Sou eu mesmo. A senhora certamente deve ser a mãe da Heloísa, não é?

- Sou eu mesma, doutor. Como está a minha filha? Diga pelo amor de Deus, doutor!

- Agora o quadro dela já está mais estabilizado. Ela reagiu muito bem aos medicamentos e a pressão intra-craniana felizmente está controlada.

- Então não vai mais precisar de cirurgia, doutor? – Perguntou a mãe cheia de esperanças.

- Eu não sei se o doutor Cláudio explicou para as senhoras, mas a paciente teve um afundamento de crânio, o que provoca o aumento na pressão interna da cabeça, por estar comprimindo alguns vasos sanguíneos. A cirurgia será necessária para a descompressão desses vasos. – Explicou pacientemente o doutor Ralf.

- E a minha sobrinha ficará com alguma seqüela, doutor? – Perguntou a Eunice.

- Existe uma grande probabilidade de que após a cirurgia, não fique nenhuma seqüela. Mas isso a gente só vai poder avaliar após a cirurgia.

- E quando será feita a cirurgia, doutor? – Perguntou a Eunice.

- Pretendemos iniciar os procedimentos cirúrgicos dentro de meia hora e a paciente já está sendo preparada. Agora pelas normas do hospital, por ser uma cirurgia de alto risco, é necessário que alguém da família assine um documento atestando ciência de tudo o que envolve esse tipo de intervenção cirúrgica.

Como a dona Sara não reunia condições de ler e assinar documento algum, a Eunice leu e assinou o documento autorizando a realização da cirurgia.

O doutor Ralf explicou ainda que a cirurgia teria duração de 12 a 14 horas e que logo depois, a paciente seria encaminhada para a UTI e ele ou o Doutor Plínio Arruda, o neurocirurgião, passaria o primeiro boletim pós-cirúrgico para a família.

A dona Sara orava durante todo o tempo, enquanto a Eunice ligava para comunicar o acontecido aos parentes e amigos da família, principalmente da Eloísa.

A cirurgia teve início às 5 horas da manhã e a espera era, sem dúvida, bastante angustiante. Lá pelas 8 começaram a chegar os parentes, não para visitar a Eloísa, mas sim para dar um apoio à dona Sara. Ainda antes do meio dia a Lúcia, mãe do Leandro, veio dar a notícia de que ele já estava no quarto e estava ansioso para saber notícias da namorada.

E o dia se passou assim. A dona Sara orava e chorava, sendo obrigada pela irmã a tomar pelo menos um café com leite, já que ela se recusava a comer. O Senhor Marcos, o pai da Eloísa que estava no interior, chegou antes do meio dia e se juntou à sua esposa na angustiante espera por alguma notícia que infelizmente não chegava. Lá pelas 5 da tarde a maioria das visitas já tinha ido embora, restando apenas os pais da Heloísa, a Eunice e a Valquíria, irmã caçula do seu Marcos.

Já começava a escurecer e nenhuma notícia vinha do centro cirúrgico, para aliviar a angústia da família da Heloísa. A noite chegou, o movimento nos corredores do hospital foi diminuindo e a angústia da espera ia aumentando. Já eram mais de 7 da noite quando o doutor Ralf chegou acompanhado pelo doutor Plínio Arruda.

- E aí, doutor? Como está a Heloísa? – Perguntaram os 4 ao mesmo tempo, pulando das cadeiras para ficarem mais próximos dos médicos.

- Felizmente a Heloísa reagiu muito bem à cirurgia e podemos considerar que foi um sucesso. – Começou o doutor Plínio.

- E o senhor já pode dizer se ela ficará com alguma seqüela? – Perguntou a Valquíria.

- Felizmente, a compressão dos vasos não comprometeu o sistema neurotransmissor, o que significa dizer que ela vai ver, falar, ouvir e se movimentar normalmente, depois que estiver totalmente recuperada da cirurgia, é claro. O que pode acontecer é que, como o momento do acidente e o impacto foram psicologicamente traumáticos, ela poderá apresentar alguns lapsos de memória ou até mesmo não se lembrar de fatos e pessoas, quando acordar. – Completou o doutor Ralf.

- E isso vai durar muito tempo, Doutor? E tem tratamento caso isso dure? – Perguntou a dona Sara.

- Isso varia de paciente para paciente e, com certeza existe o acompanhamento neurológico e psicológico, tanto para a paciente, quanto para a família. A ajuda da família nesses casos é muito importante para o tratamento, mas a gente só vai saber o que vai ser feito quando a Heloísa for acordada e a equipe médica avaliar o seu comportamento. – Respondeu o doutor Ralf com a sua inconfundível calma.

- E ela está consciente? – Perguntou a Eunice.

- Ela está em coma induzido, por causa dos procedimentos da cirurgia e porque ela está ligada a um respirador artificial. À medida em que a paciente for se recuperando e ao mesmo tempo reunindo condições de respirar sozinha, os medicamentos que a mantêm desacordada serão retirados gradativamente até que ela volte ao estado de consciência. – Respondeu o doutor Plínio, o Neurocirurgião.

- E quanto tempo ela vai ficar na UTI? – Perguntou o seu Marcos igualmente aflito.

- A previsão para esse tipo de cirurgia é de no mínimo 7 dias, vai depender da recuperação da Heloísa. – Respondeu o doutor Plínio.

- Como a paciente ficará na UTI e nos dois primeiros dias a família não tem acesso ao paciente, eu aconselho que vocês voltem para casa, procurem descansar um pouco e amanhã vocês poderão voltar, pois a equipe de plantão da UTI só fornece boletins dos pacientes no horário de 10 às 11 da manhã e das 16 às 17 horas, no período da tarde. – Sugeriu o doutor Ralf.

Mesmo contra a vontade da dona Sara e do seu Marcos, os 4 foram para casa, convencidos pelos médicos e pela Eunice e a Valquíria.

Naquela noite ninguém naquela casa conseguia dormir. Todos tomaram um banho e se deitaram apenas para descansar o corpo, mas ninguém conseguia pegar no sono e muito menos comer nada.

No outro dia, lá estavam os pais e as duas tias da Heloísa no hospital antes das 10 horas, ansiosos por notícias da jovem. Pontualmente às 11 o doutor Ralf veio conversar com a família para dar o boletim médico da primeira noite depois da cirurgia.

- Ela passou a noite bem e está reagindo cada vez melhor aos medicamentos. Se a recuperação continuar nesse ritmo, depois de amanhã ela já estará respirando sem a ajuda dos aparelhos.

- E que dia a gente pode ver a Heloísa, doutor? – Perguntou a Eunice.

- Acho que amanhã talvez. Ela não vai estar acordada, mas a família poderá vê-la.  – Respondeu o doutor Ralf animando bastante o seu Marcos e a dona Sara.

Mais animados com a recuperação da jovem, todos voltaram para casa e até conseguiram almoçar um pouco. Quando estavam todos na mesa para o almoço a Valquíria comentou:

- O que poderá ter acontecido para ter provocado um acidente tão grave! O Leandro sempre foi tão cuidadoso ao volante. Será que ele teria bebido um pouco a mais?

Aquelas palavras caíram como uma bomba nos ouvidos da tia Eunice que ficou bastante intrigada com aquela observação. Logo depois do almoço, enquanto o seu Marcos e a dona Sara se deitaram para tentar dormir um pouco, a Eunice chamou a Valquíria e as duas foram até a casa da Denise que era na mesma rua. Como a Denise estava na casa da Bia, as duas atravessaram a rua e entraram no prédio logo em frente.

A Valquíria propôs que fossem as 4 para o Porto da Barra para comerem um acarajé e conversarem sobre tudo o que teria acontecido na noite do acidente. Elas então se arrumaram e foram com a Eunice e a Valquíria para o hospital e, enquanto as tias aguardavam o boletim médico da Heloísa na sala de espera da UTI, a Bia e a Denise aproveitaram para ver o Leandro.

No fim da tarde estavam as 4 sentadas numa mesinha de frente para o por do sol no Porto da Barra comendo aquele acarajé bem quentinho e crocante, quando a Eunice começou:

- Bem meninas. Hoje na hora do almoço a Val fez uma observação que, para mim, pode ajudar a esclarecer as circunstâncias em que o acidente que vitimou o Leandro e a Heloísa pode ter acontecido. Eu queria saber de vocês como o Leandro se comportou lá no show. Ele estava bebendo muito? Eles brigaram por algum motivo?

Muito desembaraçada, a Denise começou:

- Na verdade eles já saíram de casa discutindo, tia Nice. O Leandro não queria que a Helô fosse ao camarim prá conhecer a dupla e a Helô não aceitava abrir mão dessa oportunidade que, segundo ela, talvez fosse única.

- E eles discutiam enquanto o Leandro estava dirigindo? – Perguntou a Valquíria com ares de detetive.

- Não, tia Val. Eles discutiram enquanto a gente esperava a Bia descer. Depois que a gente entrou no carro eles não mais discutiram. – Concluiu a Denise.

- Mas quando a gente chegou no Bahia Café Hal e o Leandro viu que a Helô foi mesmo para a fila do camarim, ele ficou muito nervoso e começou a beber bastante. Aí a gente foi e conseguiu entrar no camarim, com as credenciais que a gente tinha ganhado no sorteio da rádio. A gente conheceu a dupla, tiramos fotos, ganhamos autógrafos e...

- E o quê, Bia? Fala de uma vez. – Reclamou a Valquíria impaciente.

- É que a Helô fez a gente jurar que não contaria isso prá ninguém, tia Val. – Argumentou a Bia.

Quando a Eunice e a Valquíria explicaram tudo o que o doutor Ralf falou sobre os prováveis lapsos de memória e até a possibilidade de que a Helô ficasse por algum tempo sem conseguir se lembrar de fatos e pessoas, a Denise resolveu falar tudo:

- A gente tava tirando fotos e a Bia tava filmando com o celular, quando a Helô pediu para que o Artur lhe desse um beijo, pensando em ganhar no máximo um selinho. O Artur levantou a Helô nos braços e lhe deu um beijo no mais conhecido estilo desentupidor de pia.

- E o Leandro viu isso? – Perguntou a Valquíria assustada.

- Viu não, tia Val. Mas depois desse beijo a Helô ficou totalmente fora de si e não conseguia mais disfarçar o deslumbramento diante do que tinha acontecido. Mas não era prá menos, porque o Artur chegou a sugerir que ela voltasse para o camarim depois do show, para que os dois fossem juntos a uma balada. – Concluiu a Denise.

- Aí a gente foi curtir o show na área vip, bem em frente e pertinho do palco. A Helô se esbaldou no show. Ela dançou muito, cantava todas as músicas, tirou um monte de fotos, tomou muita cerveja e brincava com toda a galera conhecida da faculdade que estava junta na área vip. – Completou a Bia.

- Mas então o que teria deixado o Leandro tão fora de si? – Perguntou a Eunice, enquanto pedia mais uma cerveja e uma porção de mine acarajés.

- Durante o show a Helô não tirava os olhos do Artur no palco e ele cantava e tocava o tempo inteiro olhando prá ela. Ele jogava beijos, dava tchauzinho e até uma toalhinha padronizada que ele usou para enxugar o suor ele jogou para a Helô, que quase enfartou. -  Respondeu a Denise.

- E o Leandro estava assistindo a isso tudo? – Perguntou a Valquíria.

- Ele sumiu da gente durante boa parte do show, tia Val. Mas já perto da hora de ir embora ele reapareceu a tempo de ver o Artur distribuindo rosas para as fãs e a primeira a receber foi justamente a Helô. – Respondeu a Denise.

- E junto com a rosa ele entregou a ela a paleta que ele estava usando para tocar a guitarra, embrulhada em um papelzinho com o número do whats pessoal dele e com um pedido para que ela enviasse prá ele as melhores fotos dele que ele tinha visto ela tirar durante o show. – Completou a Bia.

- Se a gente tivesse esse material, a depender da evolução do tratamento da Heloísa, o doutor Ralf poderia utilizar tudo isso para ajudar, caso a Heloísa não se lembre de alguma coisa. – Observou a Eunice.

- Mas esse material não caiu no rio no acidente, porque ela me entregou a câmera fotográfica, o celular, a toalhinha e a paleta com o número do whats para que eu guardasse, por medo de que o Leandro quisesse destruir tudo num acesso de raiva. – Aparteou a Denise.

No caminho de volta prá casa, ficou decidido que o material ficaria guardado na casa da Denise, até segunda ordem. Decidiram também manter no mais absoluto segredo tudo o que elas tinham conversado naquela tarde.

No dia seguinte as notícias eram ainda mais animadoras, pois os medicamentos que mantinham a Heloísa em coma induzido começaram a ser gradativamente retirados e ela já respirava por cada vez mais tempo sem a ajuda do respirador artificial. No terceiro dia após a cirurgia as visitas da família foram liberadas, podendo entrar apenas um familiar por horário de visita, ficando lá dentro apenas por 10 minutos.

A dona Sara, assim como o seu Marcos, não tinham coragem de entrar na UTI, entrando apenas as tias Eunice, Valquíria e Aparecida, e as primas Flávia e Camila que também eram enfermeiras. Os demais familiares se juntavam na sala de espera da UTI        , para ouvir os boletins dos médicos e as notícias trazidas pelos que entravam para  ver a jovem que, a cada dia mostrava-se mais recuperada.

No sexto dia de UTI, a Heloísa finalmente foi acordada com a retirada total dos medicamentos. Ela acordou bastante confusa, sem saber a onde estava que horas eram e porque ela estava ali. O doutor Ralf explicou pacientemente tudo o que tinha acontecido e ela continuava bastante agitada, apesar de afirmar que não sentia nenhuma dor.

Perguntada pelo nome do seu pai e da sua mãe e até mesmo pelo seu próprio nome, a Heloísa respondeu corretamente, mas quando o doutor Ralf mostrou a ela a foto dos pais, a jovem não os reconheceu. Mas ainda estava cedo, ela tinha apenas acabado de acordar depois de 8 dias inconsciente e era até natural que houvessem algumas confusões mentais.

Como a Heloísa só seria transferida para o quarto no outro dia e ainda passaria mais duas semanas no hospital, o doutor Ralf foi dar a notícia para a família:

- Como nós imaginávamos, a Heloísa está reagindo muito bem. Ela já está acordada e amanhã será transferida para o quarto.

- E a gente pode ver a Heloísa, doutor? – Perguntou a Valquíria ansiosa.

- Ela acordou ainda um pouco atordoada e agitada. Ela se lembrou do seu próprio nome e do nome dos pais, mas ainda não consegue associar as imagens aos nomes das pessoas. – Explicou o doutor Ralf.

- E ela ainda está acordada, doutor? – Perguntou a Eunice.

- Ela ficou muito nervosa por não ter reconhecido os pais na foto e tivemos que medicá-la para que ela se acalmasse. Ela deve acordar em uma ou duas horas e aí já será mais fácil para receber alguém da família, mesmo sendo visita rápida. – Tranquilizou o doutor Ralf.

Duas horas depois a Heloísa acordou e lá estava o doutor Ralf e a dr Fernanda Pinheiro, psicóloga, esperando para conversarem com a garota:

- Eu já entendi, doutor. Eu sofri um acidente, bati a cabeça, fiz uma cirurgia e perdi a memória. Não é isso?

- Não exatamente assim. Você provavelmente não esteja conseguindo se lembrar de algumas coisas, devido ao tempo que você precisou ficar desacordada. Mas aos poucos e com a ajuda da doutora Fernanda, com a minha ajuda e com a ajuda da sua família, suas lembranças serão restituídas aos poucos.

A conversa se prolongou por pouco tempo, para que a paciente não falasse muito e não ficasse cansada.

No outro dia, assim que chegou ao quarto, a Heloísa disse:

- Apesar de eu não me lembrar, eu já sei que aquela ali é a minha mãe e aquele é o meu pai. E vocês duas? Quem são? – Perguntou a Heloísa completamente desnorteada.

- Eu sou a sua tia Val, irmã caçula do seu pai e ela é a sua tia Nice, irmã caçula da sua mãe e que mora com vocês na sua casa.

- Ah! Você é a tia que fazia pizza todos os sábados quando a gente ia passar o fim de semana na casa da vó Chica, lá na Pituba, não é?

O fato da Heloísa se lembrar da tia, da avó e da pizza que comia nos finais de semana já foi uma vitória bastante comemorada pela família, pois o doutor Ralf e a doutora Fernanda já tinham avisado que o processo de recuperação da memória da Heloísa exigiria bastante paciência e muita ajuda de todos.

Como a recuperação seguia com grande êxito, a Heloísa teve alta na data prevista pelos médicos e pôde finalmente voltar para casa. Uma semana se passou e a Heloísa continuava angustiada por estar se sentindo uma pessoa sem estória. Ela voltava ao consultório do doutor Ralf uma vez por semana para o controle dos medicamentos que diminuíam a sua ansiedade, angústia e agitação por não se lembrar das coisas que vivera antes do acidente. Do consultório da doutora Fernanda vinham às respostas para algumas das suas dúvidas, várias sugestões de coisas que a Heloísa deveria fazer e, principalmente, as orientações de como a família deveria agir e o que não poderia fazer de jeito nenhum, para ajudar no processo de recuperação da Heloísa.

E o pior é que o comportamento da Heloísa havia mudado radicalmente depois do acidente. Ela já não queria ir à igreja, passou a usar umas roupas bastante curtas e devarças, não tava nem aí para os estudos, deixou as aulas de vôlei e de natação, passou a ir para as baladas e só chegar pela manhã quando o sol já estava claro. E, prá piorar, passou a fumar, a beber sem limites e a ficar com um cara diferente a cada vez que ia a uma balada.

Angustiados com a personalidade de periguete que a filha havia assumido, os pais contavam com a Denise e a Bia para acompanhar a Helô e impedir que ela fizesse alguma besteira, sobre o efeito do álcool.

Numa das consultas com a doutora Fernanda, a Heloísa desabafou:

- Eu sei quem são os meus pais, meus tios, primos e amigos. Eu vi minhas fotos dos 15 anos, da primeira comunhão, de vários aniversários meus, festas de natal na casa da minha avó Chica e apresentações na escola em que eu estudei. Eu já li e reli meus diários e meus cadernos de recordações onde os meus colegas escreviam ao final de cada ano. Já ouvi todos os meus discos e vi até os álbuns de figurinhas que eu colecionava na minha infância. Eu sei de cor toda a minha estória, mas o pior é que aqui dentro de mim, eu não me sinto parte dela. Por entre as sombras que eu sei que são do meu passado, eu não consegui ver ainda nada que possa acender uma luz que me faça sentir parte integrante dessa estória que eu sei que é minha.

- E o Leandro? – Perguntou a doutora Fernanda.

- Ele já foi lá em casa várias vezes. Já me levou presentes, flores, caixas de bombons e até já me levou a lugares onde segundo ele a gente costumava ir juntos. Ele e todas as pessoas que eu conheço dizem que ele é meu namorado, mas eu não consigo me sentir ligada a ele de jeito nenhum. Eu não tenho nenhum sentimento por ele, nem tesao eu sinto quando ele me toca ou me abraça.

- Ele já te beijou alguma vez?

- Já e foi como se eu estivesse beijando o monumento que tem na praça Castro Alves. Eu acho ele muito careta, certinho, ciumento e controlador. Eu acho que ele não tem absolutamente nada a ver comigo e eu nem me sinto namorada dele. – Respondeu a Heloísa friamente, sem demonstrar a menor emoção ao falar do Leandro.

Seguindo as orientações da doutora Fernanda e do doutor Ralf, as tias Nice e Val pegaram o número do whats do Artur e falaram para ele sobre o acidente da Heloísa, logo após o show de Salvador. O Artur pediu que elas enviassem um número de telefone fixo para que ele pudesse ligar para saber de tudo em maiores detalhes. E foi assim que o Artur ficou sabendo que no acidente a Heloísa tinha perdido a memória e o quanto a família estava lutando e sofrendo com o seu processo de recuperação.

Apesar da apertada agenda de shows, o Artur se comprometeu a voltar à Bahia assim que tivesse um tempo livre e mediante a autorização da equipe médica, para ver se com a sua visita, a Heloísa se lembrava de alguma coisa que tinha acontecido naquele dia e, por conseqüência, se lembrasse do acidente para que finalmente sua memória fosse desbloqueada.

O doutor Ralf sugeriu à família da Heloísa que a levassem para uma consulta com um colega seu em São Paulo, o doutor Daniel Vilas Boas, um especialista que todos os anos participava de congressos, cursos e seminários sobre a memória humana. O doutor Daniel tinha acabado de chegar de um congresso de 15 dias nos Estados Unidos e através do intermédio do doutor Ralf, a consulta da Heloísa foi marcada para a semana seguinte.

Uma semana depois, lá estava a Heloísa embarcando para São Paulo com os pais e as tias Val e Nice. Todos tinham muita esperança naquela viajem, pois o médico indicado pelo doutor Ralf era excelente, com resultados bastante positivos nos tratamentos feitos por ele.

Em fim chegaram ao aeroporto, já quase meio dia, quando o fluxo de pessoas embarcando e desembarcando é realmente muito grande. Enquanto os pais da Heloísa foram receber as malas, a jovem esperava na companhia das tias, atenta a todos os movimentos do aeroporto.

Num determinado momento a Heloísa viu passar por um dos portões de desembarque um rapaz branquinho, malhado de bermuda e boné, vestindo uma camiseta branca e com um notebook na mão. Apesar de não está super produzido, a Heloísa reconheceu que aquele cara era o Artur da dupla e, simplesmente saiu correndo pelo saguão do aeroporto e gritando:

- Artur! Artur! Pare aí! Espera um pouquinho aí!

O Rapaz olhou para trás e, ao reconhecer a garota que ele tinha conhecido na Bahia e que as tias tinham lhe mandado uma foto dela bastante recente, parou, acenou sorrindo e foi correndo ao encontro da Heloísa.

- Helô! Você por aqui! Que novidade boa é essa?

- Você ainda se lembra de mim? Mesmo depois de quase um ano? – Admirou-se a Heloísa bastante agitada não só por estar vendo o Artur, mas por estarem voltando na sua cabeça todas as imagens daquela noite do show como se fosse um filme.

- Claro que eu me lembro. E Minhas fotos que você ficou de mandar no whats?

- Agora eu estou me lembrando de que, naquele dia eu deixei a câmera e o celular com a Denise e estão todas lá. Assim que eu chegar em Salvador eu te envio as fotos.

- E eu posso repetir o beijo que nós trocamos naquele dia do show? – Perguntou o Artur.

A Heloísa balançou a cabeça afirmativamente e, como em Salvador, o Artur a pegou no colo e lhe deu um beijo exatamente igual ao do dia do show, só que agora tendo as tias na platéia, paralisadas.

- Naquele dia eu fiquei de voltar ao camarim depois do show para a gente ir na balada e acabou não dando certo, por causa de uns lances que estavam perdidos na minha memória mas agora que eu estou me lembrando, eu vou te contar.

Como o Artur sabia da perda da memória da Heloísa e ela parecia estar começando a se lembrar dos fatos, ele foi junto com ela e a família para o hotel em que eles iriam se hospedar. Almoçaram todos num restaurante indicado pelo Artur e depois os pais da Heloísa foram descansar e ela passou a tarde na piscina do hotel com o Artur e as tias. Ela contou simplesmente tudo o que aconteceu no dia do show, antes durante e depois.

Foi aí que as tias da Heloísa ficaram sabendo que o Leandro e a Heloísa saíram do show já discutindo e que o Leandro começou a correr bastante e ultrapassar todos os carros, simplesmente para provocar a Heloísa, porque ela não gostava que ele fizesse isso. No momento do acidente o que aconteceu foi que o Leandro ultrapassou o carro que ia na sua frente justamente em cima da ponte e, no momento da ultrapassagem, quando ele passou para a pista contrária, vinha outro carro em alta velocidade e os dois bateram de frente, sendo o carro do Leandro jogado por cima da mureta da ponte e indo parar dentro do rio.

- Depois que o carro bateu eu já não vi mais nada. Quando eu acordei, estava no hospital, com o cabelo raspado e as marcas da cirurgia para desamassar a cabeça. Eu tava horrível e desmemoriada. – Contou ela.

- Nem pense nisso. Você nunca vai deixar de ser linda. O cabelo já está quase do mesmo tamanho que estava no dia do show e você já está se lembrando de muitas coisas. Agora é só uma questão de tempo. – Aparteou o Artur.

Nesse momento a Valquíria e a Eunice correram para ligar para o doutor Ralf e para a doutora Fernanda, para dar conta do que tinha acontecido. Os médicos orientaram que elas desmarcassem a consulta com o doutor Daniel e voltassem aos consultórios dos dois, assim que retornassem a Salvador.

O Artur sugeriu levar todos a uma cantina das mais badaladas de São Paulo, para que todos jantassem juntos num lugar bem legal.

No outro dia foram todos conhecer a  o escritório da produção da dupla, o estúdio onde a dupla gravava e ensaiava e a loja onde vendia tudo o que se possa imaginar com a marca da dupla. Na loja a Heloísa comprou uma caneca, uma camiseta e uma almofada padronizada da dupla para a Denise e para a Bia. O Artur pediu a um dos vendedores que colocasse numa mochila um monte de produtos com a marca da dupla para ele dar de presente à Heloísa, que já estava quase levantando vôo de tanta felicidade.

Durante o almoço o Artur demonstrou vontade de voltar à Bahia durante as suas férias para passar uns dias na praia.

- Minha tia Valdívia tem uma casa de praia em Arembepe, no litoral norte de Salvador. Se você for mesmo, a gente programa para passar uns 4 dias lá.

- É um lugar bastante tranqüilo, Artur. A casa não é muito grande, mas você vai gostar bastante e a família vai ter o maior prazer em receber você. – Emendou a Valquíria.

- Então fica certo. Assim que a Helô chegar em Salvador, ela vai me mandando as fotos pelo whats e eu vou dando notícias. Quando faltarem duas semanas para eu ir para a Bahia e eu já estiver de passagem comprada, eu aviso à Helô. – Concordou o Artur.

- Avise inclusive a hora da sua chegada no aeroporto, que eu faço questão de ir buscar você, junto com a minha sobrinha e duas maluquinhas amigas dela que são loucas pela dupla. – Sugeriu a Eunice.

- Aproveita e vê se o Adriano não quer ir também, para a alegria das minhas amigas. – Completou a Heloísa exibindo um sorriso que a família não via desde o acidente.

Depois do almoço o Artur foi levar todo mundo no aeroporto. Ouviu o emocionado discurso de agradecimento do seu Marcos, foi bastante abençoado pela dona Sara, despediu-se com a promessa de uma boa temporada na praia garantida pela Val e pela Nice finalmente, trocou abraços e beijos bastante carinhosos com a Heloísa, ficando os dois de manterem diariamente o contato pelo whats, pelo face e pelo celular.

Quando o avião pousou em Salvador, a Heloísa já não se angustiava por se sentir perdida por entre as sombras do seu passado, mas havia recuperado a sua condição de protagonista da sua própria estória.

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